terça-feira, 22 de novembro de 2011

Fúria


Ele vai se arrastando com destino ao seu quarto , desejando uma boa soneca. Dormir quase todas as noites por quatro ou cinco horas detona qualquer um... Iludido, acreditando que vai descansar após o almoço, se joga na cama do jeito que está. Mas terá que estar de pé em muito pouco tempo. Uma tal de prova no dia seguinte... Sempre tem uma limitando as intenções de sono. Mas não há condições de estudar sem cochilar, não tem jeito. E ainda bem que o soninho está chegando...

Já quase sonhando, pancadas fortíssimas na porta e gritos estridentes o obrigam a esbugalhar os olhos... Eita susto! Do outro lado da porta ele ouve “Vá pegar o dinheiro que tem que pagar o aluguel, desde a semana passada”. Era sua mãe. E enquanto ela bradava coisas ofensivas do outro lado da porta, ele se sentava lentamente na cama. Mas o que era isso afinal? Ela provavelmente limpou o quarto mais cedo e, bisbilhotando os papéis como era seu costume, viu o número do banco anotado em um folheto religioso. O pai havia mandado o dinheiro na tarde do dia anterior. Já bastante irritado com mais esse ocorrido, ele saiu do quarto e tratou de responder:
- Eu não vou pegar dinheiro nenhum agora, tenho uma prova amanhã e preciso descansar pra estudar.
O que seguiu a isto foram mais berros da outra parte, velhas ameaças já conhecidas e sem fundamento.

Sem mais palavras e tomado de raiva, resolve sair do quarto, à procura de algum tipo de saída, uma forma de reagir. Ao passar pelo corredor do quarto, observa rapidamente a expressão da sua mãe... Dissimulada, aparentando despreocupação, com a frieza típica dos perversos, capazes de mentir com um grau absurdo de convencimento. E um leve sorriso, de quem se delicia ao demonstrar superioridade. Só aumentou a fúria dele.

Após andar de forma abobada por diversos cantos da casa, voltou ao quarto fechando a porta com bastante força. E ligou o aparelho de som no volume máximo! Tinha necessidade de gritar, extravasar todo o sentimento de injustiça que o dominava mais uma vez. E ao correr os olhos pelo local, acabou ficando de frente para um enorme ventilador velho que já não funcionava bem, e nem era mais utilizado. Esse iria sobrar... Com um estampido, o ventilador logo estava no chão. E, acompanhada de gritos e xingamentos, logo uma cadeira caiu por cima, quebrando uma hélice e algumas peças pequenas. Com o barulho, logo sua mãe tentou adentrar no cômodo, preocupada com o barulho que chegava até a os vizinhos. Mais não foi ela que começou uma gritaria? Ele não estava nem um pouco preocupado com a vizinhança, e tratou de evitar que ela entrasse no quarto empurrando a porta enquanto dizia “me deixe em paz”, dando na sequencia alguns golpes na porta do guarda-roupa, que por sorte não quebraram sua mão.

Conforme as músicas iam se sucedendo, a tranquilidade aos poucos tomava conta dele. Às vezes até começava a cantar... Mas no silêncio instantâneo entre uma música e outra, se esforçava para ouvir o que ocorria na casa. E percebia sempre que sua mãe estava trabalhando. Como se nada houvesse acontecido. Como sempre. E com a mesma tranqüilidade e ausência de remorso que apresentou depois de uma vez, quando criou uma confusão tentando impedir uma irmã de realizar uma cirurgia. Será que queria que morresse? Talvez... E se ela tiver algum tipo de transtorno? Vai saber... Uma pessoa normal sabe discernir quando erra e quando acerta. Mas ela tinha sempre a convicção de estar acima de qualquer opinião contrária...

Ao término da última música, ele resolveu deitar na cama. Haveria aquela prova no outro dia... Decidiu não fazer, não conseguiria estudar o que precisava. Melhor ficar ali mesmo, observando o teto e pensando. Ele e a mãe precisavam se separar. Para o bem dos dois.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Aniversário

Um pouco ofegante após subir as escadas que levam ao seu apartamento, ele sentou em frente à televisão e ligou no jogo. A partida já estava em seus vinte minutos do segundo tempo, empatada em zero a zero. Havia andado muito depressa no trajeto entre o mercado e o apartamento, o risco de chuva era iminente. E fazia um ventinho frio...

Estava já tirando um cochilo quando o apito do árbitro o despertou. O zero a zero persistiu até o final... Que chato! Com uma chuva mais forte começando a cair lá fora, ele foi até a mesa e retirou o bolo da embalagem. Uma torta pequena, branca, com a inscrição “Feliz Aniversário” feita em chocolate ao leite. Precisaria de uma vela? Só para cumprir o ritual, foi até o quarto desabitado da casa, onde sabia ter deixado umas velas novinhas. Estavam em cima de uma cama de casal, empoeirada, vazia... Ele preferia dormir na de solteiro, no quarto menor, sabe-se lá por que. Retirou uma única vela do pacote e voltou ao bolo, já de posse também de um isqueiro. Enquanto isso, na televisão, um comentarista polemizava o resultado da partida... Seria um absurdo assim tão grande o líder do campeonato empatar com o último colocado? Enfim, deixou o bolo lá e foi tomar um banho...

A chuva já caía pesada quando deixou o banheiro, e ele saiu correndo para fechar as janelas. Melhor se agasalhar bem... Com pressa por causa do frio, se vestiu rapidamente, desligou o televisor e voltou à sua torta. E de pé, diante da mesa, permaneceu por uns instantes fitando a inscrição de chocolate. “Feliz Aniversário”. “Feliz Aniversário...”. Finalmente ele pegou o isqueiro, acendeu a vela e sentou na cadeira. E parou observando a chama. Estático. Até que notou que os olhos estavam úmidos, e os apertou para evitar que transbordassem... E os abriu, com um olhar um tanto furioso, e soprou a chama. E o sopro saiu tão forte que a vela ficou à semelhança da Torre de Pisa... É amigo, seu tempo já passou... Feliz aniversário!